domingo, 31 de maio de 2015

Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na ação. 
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado; 
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar, 
Fitei de frente todos os destinos pela distração de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta, 
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...

Álvaro de Campos

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Conviva com isso

Quando a pessoa empaca na catraca do metrô
ou no ônibus fica procurando em qual das cinco bolsas e sacolas está o bilhete único
Quando o carro da frente anda a 30 Km/h
ou a máquina de cartão de crédito fica sem sinal bem na minha vez
ou na lanchonete a pessoa fica indecisa do que vai pedir e enche o atendente de perguntas sobre os sabores do lanche, dos sucos, bolos e doces etc.

É sempre um mini infarto, uma bufada e virada de olho, pernas impacientes. Planejo assassinatos, invento palavrões, começo a cantar mentalmente algum forró muito querido pra amenizar meu ódio e impaciência. Maldigo o mundo: Inferno!

Dai lembro que é a vida tirando mais uma com a minha cara: vai ter que esperar, conviva com isso!
E ao invés de aprender e desencanar da parcela lerda da sociedade, eu rebelde, insisto em teimar, esquecendo-me que viver nada mais é do que uma eterna espera. Tolinha.





domingo, 17 de maio de 2015

Saudade e outros tons


Coloquei os discos pra tocar na ânsia de diminuir a saudade e acalmar meu coração inquieto. Que é uma forma de sentir você perto mesmo não estando. 

Fiquei olhando a vitrola linda e vermelha que ganhei de aniversário, viajei, lembrei dos forrós no quarto, das tardes quentes de verão. Nara cantava Opinião, pausei e coloquei Gil, ainda não tava do jeito que eu queria e mandei Chico. A saudade é uma coisa mucho loca mesmo. Vou engolindo o calendário, quero pular os dias e acordar só no dia que você bater no portão e dizer: Braza, cheguei! 

Quem foi que escreveu essa cena, essa sequência mista de cenas lindas e tristes ao mesmo tempo? Isso não tava no meu roteiro. A saudade é foda, é a forma de perceber que o sentimento existe mesmo a quilômetros de distância. Acho bonito, desconhecia essa maneira de gostar.

E se de um lado eu choro de outro eu gargalho, meu lado bom reforça a ideia de que "tá tudo bem, porque a vida é assim mesmo e o importante é viver tudo isso". É, tá tudo bem. 

O disco acabou, sobrou o silêncio no quarto. Levantei e coloquei um mais animado pra tocar, do jeito que você me ensinou. "O som não pode parar, Braza." 


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Sobre o melhor vinagrete do mundo

Nessa vida já fiz muita coisa, sempre com a intensidade que herdei de berço. Já cruzei São Paulo indo longe, muito longe, mais precisamente no Jardim 9 de Julho, São Mateus, zona leste. Do Butantã até lá eram 50 minutos de carro ou 1h30 de ônibus e metrô. E foi assim por uns três meses. Quando me envolvo, me envolvo mesmo, que esse negócio de regular sentimento nunca foi comigo.

Era uma cidade completamente diferente da que eu vivia, interessante e viva. Recheada de bailes funk, pessoas na rua ouvindo som alto, churrasco no quintal, bares. Descrevendo assim parece igual a todos os bairros, mas era diferente. As pessoas meio desconfiadas, porém acolhedoras. A gente ia entrando pelas casas da vizinhança, comia uma torta aqui, tomava uma cerveja acolá. Meio interior, meio vila. Fui recebida sempre com muita simplicidade, e curiosa, captava tudo ao meu redor: as casas, os cheiros, os costumes, o córrego sujo que cortava o bairro, a escola quase abandonada. Sesc Itaquera era nosso vizinho e meu pensamento: "Eu tô muito longe da minha casa, mas quer saber? Nem ligo, tô feliz e é isso que importa". E assim seguiu esse mini-romance até virar o outono e chegar ao final.

Admiro muito quem não teme demonstrar sentimentos, quem consegue abrir a vida e compartilhar seu modo de viver. Naquela época fui muito feliz com pouco, um quarto e uns CDS de forrós antigos, rememorando a época do KVA, comendo batata frita por aí, correndo atrás de uma vaga pra guardar meu carro, tomando café da manhã feito por quem eu gostava, tem melhor?

E todos os domingos em que eu estive lá, eu disse todos, eu comi o melhor vinagrete que já provei na minha vida. A mãe dele, fofa e forte, me contava histórias de como era ser negra e morar na periferia nos anos 80. Enquanto eu ouvia, ela cozinhava, cortava os tomates, as cebolas e as salsinhas. Eu, em silêncio, agradecia a cada colherada.

Num dia de verão e sol a pino, o bafo quente do chão invadia a casa e nem mesmo o solo, que geralmente é fresco, dava conta do calor. No fundo da casa havia um poço e foi de lá que tiramos os baldes da água gelada pra sossegar o corpo.

Atualmente, trabalhando no Belém, diariamente pego o mesmo metrô que há anos atrás me levava para lá. Apesar de rápida essa história foi bonita e verdadeira. São nesses momentos que tenho orgulho de tudo que ja vivi, de quem conheci sem medo do que vinha pela frente. Não tive mais notícias deles, mas o vinagrete jamais saiu da minha cabeça (e do meu paladar).


Núcleo Base.